sábado, 11 de junho de 2011

O “Mundo da Marcenaria” sob o olhar da Etnomatemática

 
Ana Paula da Silva
Andrios Bemfica dos Santos
Débora Tidra da Silva Barufi[1]
Profª Orientadora: Dr Claudia Glavam (UFSC)

Resumo:
            A presente pesquisa que iremos relatar foi realizada em uma Fábrica de Móveis e Esquadrias, localizada na cidade de Osório – RS. Tal pesquisa teve como meta analisar e destacar os saberes matemáticos presentes nas atividades laborais de uma marcenaria, desde a elaboração de um projeto (medir e planejar) de móveis e esquadrias até a construção dos mesmos. Esta análise teve como base a vertente da educação matemática, denominada Etnomatemática. Identificamos em nossa pesquisa estratégias matemáticas utilizadas pelo marceneiro entrevistado, e que são utilizadas com o objetivo de facilitar e até mesmo aprimorar as práticas laborais, sendo aplicadas constantemente no cotidiano deste ambiente. Dentre esses saberes e estratégias, dedicamos nossa maior atenção a como ele utiliza e distribui medidas e ângulos dentro de um projeto (espaço) a ser elaborado; como ele planeja um móvel para que não haja desperdício de material e com isso possa ter lucro; e a hierarquização existente entre o saber acadêmico e o saber popular, detendo-se aqui no ramo da marcenaria. Assim, em nossa pesquisa, buscamos nos inserir em práticas cotidianas desenvolvidas dentro da marcenaria, fazer delas objeto de estudo e investigação e também identificar a matemática acadêmica embutida em tais práticas, analisando as diversas maneiras de operar com esses conhecimentos.      


Palavras-Chave: Etnomatemática, Marcenaria, Saberes Matemáticos, Hierarquização do saber.


1.   INTRODUÇÃO


            O presente trabalho de pesquisa que realizamos, e que descrevemos a seguir, teve por objetivo identificar e discutir os saberes matemáticos produzidos por um marceneiro em sua prática laboral. A investigação foi desenvolvida em uma fábrica de móveis e esquadrias sob medida, localizada no município de Osório, Litoral Norte Gaúcho. A escolha desta temática se deu por dois motivos. O primeiro diz respeito à hipótese de que os saberes do “mundo da marcenaria” estão repletos de saberes matemáticos, e o segundo está articulado ao intuito de identificar os modos de operar matematicamente de um marceneiro, que mesmo sem ter concluído a educação básica, desempenha sua profissão de forma exemplar.

O desejo de evidenciar esses conhecimentos na área da marcenaria se deu porque uma das integrantes do grupo é filha de um marceneiro. Durante uma conversa informal na disciplina de Tópicos em Educação e Trabalho, ministrada pela Profª Dra. Claudia Glavam Duarte, a colega nos relatou sobre a experiência profissional de seu pai e como ele operava a matemática em sua prática laboral, sendo que este não concluiu seus estudos na Educação Básica, e o quanto se sentia inferiorizado em relação aos conhecimentos acadêmicos.

            A investigação contou com o depoimento do marceneiro Geovani Artur Rodrigues da Silva, 43 anos, proprietário de uma fábrica de móveis e esquadrias, o qual se dedica à marcenaria há aproximadamente 26 anos. Como pesquisadores iniciantes, elaboramos para as entrevistas um roteiro, no entanto, à medida que íamos conversando acrescentavam-se outros questionamentos resultantes das dúvidas que iam surgindo. Foram realizadas cinco entrevistas, onde analisamos a prática de trabalho do marceneiro, podendo assim perceber o quanto nos eram desconhecidas tais riquezas e detalhes dos saberes desta realidade.

Esta pesquisa qualitativa tem inspiração etnográfica, pois leva em conta o contexto social em que o indivíduo entrevistado se encontra. Partimos de entrevistas semi-estruturadas, onde os questionamentos surgiram diante dos relatos do sujeito. Como ferramentas de captação de informações, utilizamos o caderno de campo, gravador de áudio, fotos e análise dos projetos do marceneiro em seu caderno de trabalho.

Tais recursos utilizados nesta investigação nos levaram a identificar saberes matemáticos próprios usados pelo marceneiro em sua prática de trabalho, e também com o decorrer da pesquisa identificamos uma relação de hierarquização entre o saber popular do marceneiro e o saber científico dos profissionais que tem ligação com esta profissão, como engenheiros e arquitetos. Valendo-se dos aportes teóricos da Etnomatemática, submetemos o material empírico a uma análise reflexiva.

2.   CAMINHOS METODOLÓGICOS



            O trabalho de campo iniciou-se com o objetivo de investigar os saberes matemáticos de um grupo sócio-cultural, os marceneiros. Na estruturação deste trabalho de pesquisa dispomos de alguns recursos que nos auxiliaram na coleta de informações, sendo eles: caderno de campo, gravador, fotos, entrevistas semi-estruturadas realizadas com um marceneiro e observações diretas de sua prática diária.

            Na busca de saberes matemáticos inseridos nas práticas deste grupo, começamos nossa pesquisa de campo com conversas informais em visitas empíricas. Nestas conversas preliminares, fizemos uso de entrevista semi-estruturada, uma vez que esta nos possibilita uma liberdade para conduzir a conversa, permitindo que o entrevistador faça as necessárias adaptações. O gravador e caderno de campo também foram de grande valia, visto que tínhamos o objetivo de identificar os conhecimentos matemáticos presentes na prática social dos marceneiros, tomando-se por base o olhar da Etnomatemática, uma vez que esta nos permite observar as culturas ditas marginalizadas e valorizar os conhecimentos produzidos por estas. Assim, seguiram-se sucessivas visitas empíricas, onde buscávamos observar nosso pesquisado em seu cotidiano de trabalho visando conhecer seus aspectos e ações. Para tal nos baseamos na ideia de Macedo (2006), em que:

[...] o trabalho de campo significa observar pessoas in situ, isto é, descobrir onde elas estão, permanecer com elas em uma situação que, sendo por elas aceitável, permite tanto a observação íntima de certos aspectos de suas ações como descrevê-las de forma relevante para a ciência social. Engendra-se aqui o estudo in vivo de como se dinamizam as construções cotidianas das instituições humanas. (Ibidem, p. 83)

            Sendo assim, nossa pesquisa tem inspirações etnográficas, visto que observamos o marceneiro inserido no seu contexto diário de trabalho, onde este atribui diferentes racionalidades para operar a matemática em sua prática laboral. Tais racionalidades surgem das necessidades do indivíduo durante suas atividades, e assim, passam a ter significado para o exercício destas. Dessa forma se é correto supor que
           
[...] as pessoas, em sua vida cotidiana, ordenam seu meio, atribuem significados e relevância a objetos, fundamentam suas ações sociais em racionalidades de seu senso comum, não se pode fazer pesquisa de campo ou usar qualquer outro método de pesquisa nas ciências antropossociais sem levar em consideração o princípio da interpretação contextualizada. (MACEDO, p.87,2006).

Desta forma, segundo Macedo (2006) buscamos em nosso trabalho de campo reconhecer os saberes matemáticos, e em meio a este momento empírico fazer sua “interpretação contextualizada”, compreendendo as especificidades deste grupo social. Este trabalho nos possibilitou encontrar uma cultura rica em saberes matemáticos, saberes estes imersos em suas práticas laborais. Tais saberes matemáticos encontrados nesta investigação foram sendo analisados seguindo os aportes teóricos da Etnomatemática.

3.            O “MUNDO DA MARCENARIA” E A ETNOMATEMÁTICA


Nossa pesquisa toma como referência os aportes teóricos da etnomatemática, pois essa permite o reconhecimento de inúmeras formas de apresentar a matemática na realidade, na qual a matemática acadêmica nem sempre identifica. Atualmente, existe no campo da Educação Matemática, a preocupação de dar “sentido” aos conteúdos presentes no currículo formal. Uma dessas possibilidades seria inserir o conhecimento produzido por diferentes culturas no ensino e aprendizagem da matemática escolar. Estas manifestações estão tomando espaço no meio escolar devido ao grande número de pesquisas que buscam o conhecimento imerso nos grupos sócio-culturais.

 A possibilidade de inserção destes conhecimentos oriundos dos grupos estudados irá além de legitimar o conhecimento popular, farão com que os estudantes percebam que a matemática está ligada as práticas sociais, e sua origem é proveniente das necessidades do ser humano no exercício de suas atividades. Assim é interessante destacar que

[...] os estudantes se conscientizem do papel da matemática em todas as sociedades. Eles tomam consciência que as práticas matemáticas nascem das reais necessidades e interesses dos povos; os estudantes aprendem a apreciar as contribuições de culturas diferentes das suas e a valorizar a sua própria herança cultural; estabelecendo relações entre o estudo da matemática com história, linguagem, artes e outras disciplinas, todas elas adquirindo um maior significado [...] (ZASLAVSKY apud KNIJNIK, 2006, p.135).


            Visto que, toda cultura é uma ciência que deve ser valorizada, cabe ao educador  um olhar pesquisador, percebendo em que contexto social estão inseridos seus educandos, que olhe para os desafios cotidianos enfrentados pela comunidade em que estão inseridos. E busque problematizar e estabelecer relações entre os saberes curriculares e aqueles que o educando traz como resultado de suas experiências cotidianas. De acordo com Monteiro e Junior (2001),

O educador chama a atenção para a necessidade de se compreender a ciência como uma expressão cultural, o que significa respeitar as construções da ciência do outro como verdadeiras tanto quanto as nossas. (MONTEIRO; JUNIOR, 2001, p.57)

            Logo, pensamos que a etnomatemática nos permite articular saberes que são produzidos em uma marcenaria e aqueles que têm sido referência no currículo escolar. Acrescentamos ao nosso pensamento a ideia de Duarte (2003),

[...] a inclusão, no currículo escolar, destas formas não hegemônicas de conhecimentos pode contribuir para a desconstrução das concepções de inevitabilidade e naturalidade das narrativas curriculares dominantes, que constituem o currículo de matemática de uma forma muito particular. (Ibidem, p.20).



Na busca por conhecimentos matemáticos produzidos fora dos ambientes escolares e de certa forma não vinculados ao currículo escolar é que o presente trabalho vai se constituir. O objetivo deste é identificar técnicas utilizadas por diferentes grupos culturais e valorizar esses conhecimentos que, na maioria das vezes, não estão incluídos no currículo escolar. Tal pesquisa teve como foco a prática laboral da marcenaria e o contexto sócio-cultural ligado a ela. Nesta buscamos conhecer o “mundo dos marceneiros”, identificando os conhecimentos matemáticos presente em seu cotidiano de trabalho, para posteriormente analisa-los sob o “olhar” da Etnomatemática.

A busca pelo conhecimento produzido neste meio sócio-cultural, tem como objetivo colocar em evidência saberes que, até então são desconhecidos nos meios acadêmicos. Conhecimentos estes que são adquiridos através de sua prática cotidiana, que são postos a operar de forma a facilitar o seu trabalho. Estes conhecimentos são específicos deste grupo sócio-cultural, no entanto, poderiam ser incluídos no universo escolar com a finalidade dar a matemática acadêmica um significado “maior”, o significado que muitos alunos procuram, a aplicação da matemática na vida cotidiana das mais diversas culturas e grupos de trabalhadores.  Nessa perspectiva, reconhecemos que:

[...] todas as culturas produzem conhecimento matemático, é importante que se conquistem espaços nos currículos para que conhecimentos usualmente marginalizados possam ser contemplados no universo da escolarização. Nesse sentido, pesquisadores são levados a identificar técnicas ou habilidades práticas utilizadas por diferentes grupos culturais, na tentativa de conhecer e entender suas realidades e, por meio disso, direcionar este conhecimento em benefício desses grupos. (HALMENSCHLAGER, 2001, p.25)


            Assim, é importante que a matemática utilizada, nos mais diversos grupos sócio-culturais seja legitimada, de maneira que esta possa ser reconhecida no meio escolar. Com isso, muitos pesquisadores têm direcionado seu olhar para estas outras formas de matematizar, a fim de valorizar estas práticas. Logo, “[...] educar pela matemática numa perspectiva sócio-cultural requer dos educadores matemáticos a sensibilidade de perceber o diferente”. (CALDEIRA, 2007, p.122)

            No decorrer da história da Educação Matemática, sentiu-se a necessidade de romper com alguns paradigmas tradicionais do ensino desta disciplina, nos quais a matemática moderna, como foi denominada na época, visava (visa) atingir apenas conceitos e fórmulas abstratas, como a teoria dos conjuntos, a álgebra e a simbologia matemática. Essa perspectiva deixava, de lado a importância de relacionar os saberes provenientes da vivência dos alunos fora da sala de aula, impossibilitando a ligação entre os conhecimentos com as situações práticas vivenciadas pelos educandos.

            Foi então, que surgiu em meados da década de 70, a vertente da Educação Matemática denominada Etnomatemática. Seu grande precursor, Ubiratan D’Ambrosio, tinha interesse em destacar os saberes que emergiam das práticas sociais, dedicando-se a investigações empíricas e, posteriormente contribuindo com teorizações a respeito dessa, que se tornaria uma importante vertente educacional. Para D’Ambrósio (1990), Monteiro (2001) e Knijnik (1996) a etnomatemática tem o objetivo de entender e valorizar a matemática como produção cultural, relacionar os conhecimentos presentes nas atividades laborais dos diferentes grupos sociais, aliando-os à solução de problemas do cotidiano que lhes são significativos.

            No entanto, o prefixo etno tem gerado alguns conflitos para o entendimento do significado do termo etnomatemática. Muitas pessoas articulam o termo etno especificamente ao estudo de etnias. Porém, esse termo refere-se a algo bem mais amplo. D’Ambrósio afirma que:

[...] etno se refere a grupos culturais identificáveis, como por exemplo sociedades nacionais-tribais, grupos sindicais e profissionais, crianças de uma certa faixa etária etc, e inclui memória cultural, códigos, símbolos, mitos, e até maneiras específicas de raciocinar e inferir. Do mesmo modo a Matemática também é encarada de forma mais ampla que inclui contar, medir, fazer contas, classificar, ordenar, inferir e modelar. (D’AMBRÓSIO apud KNIJNIK, 2006, p.129)


Assim, é possível inferir que qualquer grupo cultural identificável – pedreiros, agricultores, artesões, marceneiros, entre outros – pode constituir-se em objeto de estudos para essa área do saber. Para Knijnik (1996) o conhecimento matemático apresenta diferentes maneiras de expressar-se, e pode estar inserido em diversos espaços que produzem saberes. Para essa autora, acompanhando a perspectiva d’ambrosiana, a própria matemática acadêmica constitui-se em uma etnomatemática.

Podemos também dizer que, o que muda:

[...] na perspectiva da Etnomatemática é que, para ela, os diferentes discursos excluídos e renegados porque não legitimados pelo saber acadêmico devem, também, ser reconhecidos e valorizados. Não se trata de sobrepor um tipo de saber ao outro, mas sim buscar as possibilidades de diálogos entre diferentes formas de interpretar a realidade. (MONTEIRO; JUNIOR,, 2001, p.47)


Na maioria das vezes, colocamos a matemática acadêmica em destaque, a frente dos conhecimentos empíricos, produzidos pelos grupos sociais. No momento em que fazemos isto estamos separando a matemática em duas classes, e hierarquizando-as sendo que isto não seria o correto se analisarmos que os saberes matemáticos são oriundos de experiências e necessidades da sociedade. Mas essa hierarquização é um fato evidente nos meios sociais, o saber acadêmico tem mais valor que o saber oriundo das experiências sociais. Essa hierarquização fica evidenciada em parte de uma entrevista que realizamos com um marceneiro, onde perguntamos a ele:


O senhor se sente inferiorizado em relação aos conhecimentos de um arquiteto ou engenheiro?


 Sendo sua resposta a seguinte:


Eu tenho conhecimento inferior, por causa que eles sabem trabalhar na tecnologia de computador, eles fazem muito desenho, fazem tudo na máquina, e isso eu não sei fazer, só sei fazer desenho a caneta na hora ali, imagino na cabeça, mas mal sei explicar pro cliente, pois faço um rascunho, e as vezes tem cliente que entende fácil, outros custam a entender, porque a gente não tem como mostrar em todas as visão [visualização em três dimensões] que nem tem a tecnologia hoje, tipo no teclado do computador faz tudo faz o que quer, mostra pro cliente, a explicação fica bem mais fácil, e tem coisas que projeta lá na máquina e não tem como fazer na realidade, e daí tem que mudar, até eles se passam as vezes, acham que dá uma coisa e na hora de fazer não tem como, a gente tenta marca de tudo que é jeito e não tem como. Daí eu digo pra eles: “Olha dessa forma não tem como fazer”. Daí teve arquiteto que insistiu dizendo: “Não, mas tem que dar pra fazer”, daí a gente vai e mostra pra lá, mostra pra cá, até que eles dizem: “Realmente não tem como fazer”. Dependendo do corte volteado, do ângulo que ele quer, dependendo do serviço não tem como fazer.


Esta hierarquização entre o saber acadêmico e o saber popular também foi constatada por Duarte (2003) em sua dissertação de mestrado, onde pesquisou sobre Etnomatemática, Currículo e prática sociais do “mundo da construção civil”. Esta verificou as relações de sobrevalorização entre os conhecimentos práticos dos pedreiros em relação aos conhecimentos teóricos dos engenheiros. Sendo assim, Duarte (2003) diz que o pedreiro:

[...] valorizava o saber prático, mas, ao mesmo tempo, apontava para a legitimação social que possui o saber de ordem teórica, adjetivando o conhecimento teórico como aquele que segue normas, que é “certinho”, enquanto o seu saber, alicerçado na prática, na “metragem da visão”, não era socialmente valorizado, pois não o havia aprendido na “faculdade”. Porém é possível inferir que, para ele, existia uma sobrevalorização do conhecimento prático em relação ao conhecimento teórico. (Duarte, 2003, p.69)

Assim, como Duarte (2003) constatou que o pedreiro muitas vezes se sentia inferiorizado, pois lhe faltava conhecimento teórico, o marceneiro se sente inferiorizado em relação aos conhecimentos teóricos do arquiteto e do engenheiro pois, admite que o uso de tecnologias oriundas da academia, utilizadas para construir os projetos facilitam as demonstrações dos mesmos para os clientes, como fica evidenciado na fala:


[...] eles sabem trabalhar na tecnologia de computador, eles fazem muito desenho, fazem tudo na máquina, e isso eu não sei fazer ... tipo no teclado do computador faz tudo faz o que quer, mostra pro cliente, a explicação fica bem mais fácil [...]


Porém quando parte para situações práticas, o marceneiro demonstra mais conhecimento que os profissionais graduados, afirmando-nos que:


[...] tem coisas que projeta lá na máquina e não tem como fazer na realidade, e daí tem que mudar, até eles [engenheiros e arquitetos]  se passam as vezes, acham que dá uma coisa e na hora de fazer não tem como [...]


Como podemos perceber na fala de Seu Geovani primeiro ele acata o projeto dos arquitetos e engenheiros, mas alega que é de praxe conferir as medidas no local onde serão instalados os móveis, o marceneiro faz isto, pois sabe que sempre há variância entre seus conhecimentos práticos e a teoria acadêmica dos arquitetos e engenheiros, os quais muitas vezes solicitam projetos inviáveis na prática, e possíveis só no papel e nos programas computacionais os quais estão acostumados a utilizar.

Neste meio laboral, as relações entre engenheiros, arquitetos e marceneiros, são constituídas de conhecimentos científicos e conhecimentos oriundos da prática. O marceneiro mesmo tendo pouco conhecimento matemático acadêmico, entende a linguagem dos projetos apresentados a ele. Isto fica evidenciado na fala do marceneiro, quando perguntamos a ele se:


O senhor tem facilidade de entender o que eles falam e desenham?



Ele nos respondeu de forma afirmativa:


Sim, tenho. Eles fazem muito bonito no papel, mas na prática o jeito e a forma de fazer é um pouco diferente. Essas discussões com os engenheiros e arquitetos, já tem há anos, mesmo quando eu trabalhava de empregado, o meu patrão discutia com eles dizendo que não dava pra fazer, e o engenheiro achar que dava, e ia na fábrica, e ele mostrava que realmente não tem como fazer. Então é o engenheiro que teima, mas já vi arquiteta que teimo comigo, não acreditou, e eu fui lá e mostrei no molde, um pedaço e risquei, e mostrei que não dava, e que não tinha como fazer do jeito que ela queria. Mostrando na prática ela viu e me deu razão: “É seu Gil, o senhor tem razão mesmo, não tem como fazer”.


Pelas falas anteriores do marceneiro, nas quais explicitou algumas de suas experiências no contato com os engenheiros e arquitetos, verificamos que, o conhecimento acadêmico embora esteja em local privilegiado em relação às práticas sociais, acaba por vezes “se rendendo” a elas, e aos saberes matemáticos vinculados as mesmas.

Ao longo da entrevista, percebemos através da fala e das expressões do entrevistado, que os engenheiros e arquitetos parecem estar mais preocupados em criar projetos para deslumbrar os clientes, ao invés de criar um móvel o qual irá se encaixar perfeitamente no espaço que está planejado. O engenheiro apresenta o projeto teórico o qual aprendeu a fazer seguindo os padrões acadêmicos, sendo que este projeto muitas vezes não irá se adequar com os conhecimentos matemáticos práticos do marceneiro, havendo até divergências entre as medidas coletadas pelos profissionais graduados e os marceneiros, fatos este que se evidenciam na fala a seguir:


[...]eles pegam o projeto, vem tudo mastigado, tudo calculado já praticamente, a gente só tem que recalcula, isso no projeto deles, medidas tudo sem compromisso. Daí a gente vai lá e mede tudo no lugar de novo, daí vai pro papel e muda todas as medidas deles, porque eles deram tudo por escala, e daí sai tudo fora, enquanto eles trás com escala, a gente vai tudo no metro mesmo daí não tem erro, a gente vai lá na casa do cliente mede no lugar e daí dá certinho, daí a gente chega com o móvel e encaixa certo no lugar, é móvel sob medida. Eles muitas vezes vão lá, só tiram uma trena pra cá, olham, a, dá 2 metros e 28, eles colocam 2 e 30, aí faz todo o cálculo no computador, daí a gente chega lá pra medir é 2 metro e 27, daí já diminuiu 3 centímetros, daí tem que passar aqueles centímetros tudo pro papel, tudo pra prática ali, daí esses 3 centímetros fazem toda a diferença, daí fica 3 centímetros menor ou 5 centímetro, já deu caso de ficar até 15 centímetros menor, ou até mesmo nem entrar o móvel por causa da medida. Mas a gente sempre confere a medida pra evitar isso, porque a gente sabe como tem que ser na prática.


Podemos dizer que o marceneiro sabe o que é possível fazer em um projeto, a partir do conhecimento matemático adquirido pela prática laboral. Mas quando questionado sobre as divergências de medidas nos projetos dos engenheiros e arquitetos, este prefere se munir criando o seu próprio desenho para então questionar o conhecimento acadêmico destes profissionais. O marceneiro prefere ter provas do erro dos arquitetos e dos engenheiros, pelo seu projeto, pelo seu “saber popular”, para então questionar “[...] o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico”. (FOUCAULT, 2007, p.143)

Sendo assim:
Não pretendemos aqui dicotomizar o saber “popular” e “acadêmico”, mas sim enfatizar que “os homens na sociedade participam, de uma maneira ou de outra, do conhecimento por ela possuído” e é principalmente a partir dos usos, práticas e significados que os sujeitos atribuem a esses conhecimentos que uma sociedade tem possibilidade de existência. (MONTEIRO; JUNIOR, 2001, p.56)

            A Etnomatemática quer aproximar o saber “popular” e o “acadêmico”, a fim de diminuir a divisão que há entre os saberes provindos das práticas sócio-culturais e os saberes provindos das práticas científicas. Esta quer fazer com que os indivíduos pertencentes à classe acadêmica conheçam e assim possam dar mais crédito aos conhecimentos matemáticos oriundos das culturas ditas marginalizadas.

            Conforme a necessidade de cada grupo social cria-se uma matemática que facilita determinado contexto de trabalho, tal matemática também pode estar vinculada a uma prática cotidiana social e econômica. Essa matemática específica é inerente às práticas diárias destes grupos, e está inseparavelmente ligada a natureza da sua atividade. Esta forma de operar com os conhecimentos matemáticos específicos divergem dos conhecimentos acadêmicos. Sendo assim,

[...] a Etnomatemática permite o reconhecimento de diferentes formas de fazer Matemática, utilizadas pelos grupos sociais em suas práticas diárias, na tentativa de resolver e manejar realidades específicas, as quais nem sempre seriam identificáveis sob a ótica da matemática acadêmica. (HALMENSCHLAGER, 2001, p.15)

            A exatidão da matemática acadêmica, com suas maneiras de medir, calcular, e inferir, por vezes, pode não identificar os conhecimentos específicos da prática de um determinado grupo social. Em nossa pesquisa na marcenaria, constatamos que para a construção de móveis e esquadrias essa exatidão da matemática “perde seu valor”. Pois se fizermos uma análise entre situações propostas pelo currículo escolar, onde irá se fazer cálculos de dimensões, vemos que no contexto social dos marceneiros esses cálculos dimensionais levam em conta conhecimentos específicos como percebemos na fala de Seu Geovani, quando o questionamos sobre a construção de uma mesa redonda de 1,20m de diâmetro:


Daí tu tem que pegar uma madeira que tenha 1,22m por 1,22m, pega o centro dela riscando um xis nas quatro pontas, pra poder achar o raio, coloca um prego no centro e coloca um gabarito do tamanho do raio da mesa, que nesse caso vai ser de 60cm, e um lápis na ponta daí vai riscando, tipo como se fosse um compasso, um ponteiro de relógio. Daí tá pronto, tá riscado, depois é só cortar, lixar preparar a madeira. Sempre tem que deixar uns dois centímetros a mais pra poder ter espaço pra poder cortar no risco certinho, porque se tu cortar com menos de 1,20m vai ficar menor, e se tu tirar 1,20m certinho, daí na hora de cortar não pega a máquina onde tá quadrada, vai só limpar o quadrado [tangenciar a lateral da madeira bruta] , daí é sempre bom ter um pouquinho a mais, e também pra sobrar quando for lixar.


            Como verificamos na fala do Seu Geovani, a medida final do objeto é menor que a medida inicial da madeira bruta, pois haverá durante o processo de beneficiamento da madeira um determinado valor de perda da mesma. Este conhecimento específico que está presente no contexto de trabalho dos marceneiros é explicado na fala de nosso entrevistado:

Na marcenaria é assim, sempre tem que deixar alguns centímetros sobrando, pra que na hora de beneficiar a madeira, o móvel ou a esquadria fiquem na medida que tem que ficar. Tem que pegar a peça sempre maior e ir arrumando ela, pra que no final ela tenha uma medida exata. Tudo vai girar em cima de uma medida padrão, que é a medida do móvel, e daí em cima de uma medida maior você vai trabalhando até chegar nela. A gente trabalha o dia todo em cima de medida, é medida e cálculo.

            Portanto, se levarmos em conta as situações-problema propostas pela metodologia pedagógica dos livros didáticos de matemática, que se preocupam freqüentemente com a contextualização dos conhecimentos matemáticos, perceberemos que estes propõem situações de cálculo, não levando em conta as implicações reais destas no cotidiano, criando apenas “historinhas” para deixar a matemática com “um pouco mais de vida”. Para Duarte (2010) operar com esta proposta na matemática:

Seria algo como se a matemática escolar, depois de se afastar do mundo social – pelas exigências do formalismo e da abstração que a caracterizam – necessitasse retornar à “vida real”, ou seja, realizar-se. Buscar a correspondência do conteúdo ensinado com sua “aparição” na “realidade”, que funcionava como um “pano de fundo” subordinado à primazia dos conteúdos escolares. (Ibidem, p.4)

Nesta perspectiva, a Etnomatemática não é apenas um meio de trazer os conteúdos formais de volta a realidade. Portanto, é necessário que se tenha uma maior preocupação com o contexto social das metodologias propostas, levando em conta suas especificidades, e fazendo destas “objeto de reflexão, análise e interpretação” (BELLO, 2004, p.391). Assim,

[...] a construção de um projeto pedagógico crítico e, portanto, com idéias de conscientização, libertação e solidariedade deve apoiar-se num processo de ensino-aprendizagem que não se limita à reprodução de competências, que não esteja limitada a informações organizadas isoladamente, mas, sim, que inclua as diferentes explicações possíveis para fenômenos do mundo real. Essas considerações inserem-se no campo de pesquisa da Etnomatemática. (MONTEIRO; JUNIOR, 2001, p.58)


            A proposta da Etnomatemática é trazer para o currículo escolar situações reais, as quais possibilitem a construção de um espaço de reflexão, análise e crítica, deixando de criar somente situações superficiais, que não levam em conta o conhecimento matemático popular. Logo, faremos:

[...] da matemática algo vivo, lidando com situações reais no tempo [agora] e no espaço [aqui]. E, através da crítica, questionar o aqui e agora. Ao fazer isso, mergulhamos nas raízes culturais e praticamos dinâmicas culturais. Estamos, efetivamente, reconhecendo na educação a importância das várias culturas e tradições na formação de uma nova civilização, transcultural e transdisciplinar (D`AMBROSIO, apud ALVES, 2005, p.2).


            Ao analisarmos o mundo da marcenaria a partir de um olhar Etnomatemático, percebemos que o marceneiro dá aos processos de matematização um valor de destaque para o exercício de sua profissão, como ele nos salienta em sua fala:


A matemática pra mim é importante porque sem ela eu não iria fazer nada.


            Embora não tenha concluído seus estudos na educação básica, este vê que o conhecimento matemático é importante, e que muitas vezes é adquirido através do meio sócio-cultural em que se está inserido, como podemos perceber em sua fala:


Todo dia a gente aprende alguma coisa nova nessa profissão [...] sempre tem coisa diferente [...] a prática é que guia tudo, sem a prática não vai [...] eu aprendi a negociar na prática com o cliente. Eu aprendi porcentagem na escola da vida, desde criança negociando, vende um passarinho, compra outro, troca, negociando. Por exemplo, 10% de R$100, 00, eu sei que é R$10,00.  Se eu quiser dar um desconto de 2% em um móvel que custa R$1.200,00, bom eu sei que 10% vai dar R$120, 00, então 2% vai dar R$24,00. Tem porcentagem que dá pra fazer de cabeça que é mais fácil.



            A partir da fala de nosso entrevistado, podemos concluir que muitos dos conhecimentos matemáticos que este utiliza em seu cotidiano, provém de experiências adquiridas durante sua atividade profissional, e não necessariamente através do conhecimento formal. Desta forma,
           
[...] cabe também salientar que a matemática desenvolvida no currículo formal – o acadêmico, não favorece a aprendizagem significativa de técnicas e conceitos que serão importantes na prática de um determinado grupo social. (ALVES, 2006, p.71)

            Para Alves (2006) os conteúdos assim como são propostos atualmente pelo currículo formal não serão de grande valia para o seu grupo social, neste caso os marceneiros, no entanto os saberes que estes adquirem durante sua prática específica de trabalho, podem vir a integrar o currículo escolar, acrescentando uma proposta transcultural e transdisciplinar. Para Alves (2006) é interessante que

[...] a matemática necessária para desenvolver a atividade de marceneiro seja um aspecto importante para enriquecer o currículo escolar e dessa forma, transformar o acontecimento em sala de aula em um espaço favorável, onde será valorizado o conhecimento, principalmente na forma em que ele pode ser aplicado. (Ibidem, p.56)

            A atividade de marceneiro com seus saberes matemáticos próprios podem ser de grande valia para enriquecer o currículo escolar, acrescentando a ele situações em que o conhecimento matemático esteja inserido, sendo feito de uma forma diferenciada a do currículo formal, provocando novas maneiras de se fazer matemática entre os educandos. Estes novos caminhos despertam pensamentos reflexivos, interpretativos e críticos a partir de uma nova visão da matemática.

Nesta nova perspectiva de questionamento da matemática, podemos citar o uso do raciocínio multiplicativo identificado em nossa pesquisa. A partir de uma situação proposta a nosso entrevistado, podemos perceber que em sua prática de trabalho, este utiliza a multiplicação de números decimais, por números naturais, porém o efetua a partir de um raciocínio multiplicativo “próprio”, fazendo adaptações da matemática acadêmica para tornar estas uma forma facilitadora no seu meio social. Podemos perceber a utilização deste raciocínio multiplicativo quando o questionamos sobre a construção de um roupeiro que tivesse que se encaixar em uma parede de 2,25m, tendo este que ser fabricado com 5 portas, também perguntamos a medida de cada porta. Sendo a sua resposta a seguinte:


Bom seria mais que 40cm, pois se fosse 2m daria 40cm, e como é mais então vai dar um pouquinho mais. Daí tem que ver, os espaços das divisões do roupeiro, se tu quer fazer dois conjuntos de portas, e uma que abre sozinha, vai dar 4 divisões, daí dependendo da espessura do enchimento, tem enchimento de 1,5cm, 1,8cm, 2,5cm. Se usar o de 1,5cm, vai dar 6cm no total das divisórias, porque se fosse 15 daria 60. Daí vai ficar, mais ou menos 44cm cada porta, porque tem que ficar um espaço entre uma porta e outra, para elas não encostarem. Daí assim que vai ficar a divisão do tamanho das portas, 5 portas de 44cm, mais os 6cm no total das divisórias, e como as portas ficam um pouco na frente das divisórias daí dá um desconto, e encaixa nos 2,25m.


            Através do relato do entrevistado, percebemos que utilizava saberes matemáticos diferenciados, fazendo destes, ferramentas facilitadoras para a sua prática laboral, sendo que o marceneiro não fazia uso material de apoio (papel, caneta e calculadora) para realizar seus cálculos. Assim, tal raciocínio multiplicativo utilizado pelo marceneiro poderia no currículo formal dar uma nova possibilidade metodológica para os algoritmos envolvendo a multiplicação de números decimais por números naturais.

            Estes métodos multiplicativos são aplicados como formas facilitadoras nas práticas cotidianas do marceneiro, apresentando nestes métodos conhecimentos que solucionarão problemas pertinentes a sua atividade laboral. Este conjunto de idéias tem vinculo com a Etnomatemática, estando assim relacionada:

[...] a conhecimentos presentes nas práticas cotidianas de diferentes grupos. Esse conhecimento não é isolado: integra-se ao cotidiano, possuindo um aspecto abrangente. Na maioria das vezes, seu uso está aliado à solução de problemas, que é pensada dentro de um conjunto de valores, crenças e saberes que lhe dão significado[...] (MONTEIRO; JUNIOR, 2001, p.46)

Ainda analisando os conhecimentos presentes na prática do marceneiro, percebemos que este utiliza a decomposição de números decimais e números inteiros, possibilitando que haja noções de tamanho das peças que irá construir, como percebemos na fala de Seu Geovani:


Bom seria mais que 40cm, pois se fosse 2m daria 40cm, e como é mais [2,25m] então vai dar um pouquinho mais.


Outro fator que Seu Geovani nos destacou, é que sempre deve-se tomar cuidado no momento de se dividir os tamanhos das portas de um móvel, pois é necessário que se deixe uma margem para as divisórias e espaços para a abertura das portas. Estes espaços das divisórias variam de 1,5cm a 3cm. Vemos assim que o marceneiro trabalha não somente com valores inteiros, mas constantemente com valores decimais. Tal fato nos foi descrito por ele em uma visita a sua fábrica, quando nos mostrou um projeto que estava executando:


[...] essa cozinha vai ter 3,63m, esse é o espaço que eu tenho pra fazer o móvel, daí eu tenho que trabalhar em cima desta medida. Esses 3cm quebrados que tem na medida a gente sempre acaba usando pra fazer os espaços entre as portas, daí o restante a gente usa pra dividir os tamanhos das divisórias e os tamanhos das portas, daí a conta não fica difícil. Na marcenaria não tem medida ruim, porque a gente já tem prática e já sabe que tem que sobrar uns centímetros nos vão entre as portas e as divisórias.


Logo, percebemos que o marceneiro não tem dificuldades de lidar com medidas “pequenas”, pois tais medidas durante a execução do projeto acabarão sendo absorvidas nas divisórias e nos espaços para a abertura das portas. Questionamos Seu Geovani sobre como ele faz para trabalhar na distribuição destas medidas para executar o projeto de forma “real”, logo ele nos explicou:


Pra fazer uma cozinha, primeiro eu faço o gabarito dela, pego um sarrafo no tamanho do espaço real, e vou fazendo as marcas, é um gabarito pro trabalho, a gente vai construindo o móvel a partir desse sarrafo, é como a planta baixa do móvel. Daí vai o ponto de água, um ponto essencial, de lá do canto do sarrafo que representa a parede, por exemplo a gente pega e mede o ponto de água onde vai ser a pia. Daí a gente vai colocando a quantidade de portas que o cliente quer a partir disso, daí nesse gabarito a gente coloca os tamanhos da portas, das divisórias, dos enchimentos, para guiar o trabalho, daí já tá tudo dividido, pra quando ir lá pra máquina não ter erro, já tá tudo mastigado aqui.


Durante a entrevista com Seu Geovani onde este nos descreveu e mostrou como se compunha um gabarito para o trabalho, percebemos o uso de conceitos matemáticos relacionados a ângulos como perpendicularismo e paralelismo. Com o intuito de fazer a ligação do saber popular do marceneiro com o saber acadêmico, introduzimos na conversa a seguinte observação:


O senhor trabalha frequentemente com conceitos de perpendicularismo e paralelismo em seu trabalho durante a montagem do gabarito para fazer os móveis e esquadrias.


Ao ouvir esta observação, Seu Geovani esboçou uma fisionomia de dúvida com relação às palavras ditas, demonstrando desconhecer tais expressões, falando o seguinte:


Perpendicularismo? Eu nunca ouvi falar nisso aí, é eu nem sei o que é isso. Onde tu viu isto?


            Logo, explicamos a Seu Geovani onde está inserido em seu trabalho o conceito matemático de perpendicularismo e paralelismo, percebendo assim como o cotidiano de trabalho da marcenaria está “cheio” de conhecimentos matemáticos acadêmicos.
Portanto destacamos que

[...] os conteúdos desenvolvidos nas escolas não têm maior significado para o marceneiro. Desta forma, ele desenvolve os trabalhos, mas não tem a preocupação dos nomes ou conhecimentos acadêmicos dos conteúdos vistos na escola tradicional. (ALVES, 2006, p.71)

Perante os relatos de nosso entrevistado nos questionamos sobre as formas de matematizar ensinadas no currículo escolar, se estes conceitos matemáticos são abordados de forma a buscar a inserção dos mesmos no contexto sócio-cultural dos educandos, atribuindo a eles significados. Logo, esses métodos de matematizar dos marceneiros podem contribuir de forma significativa para uma reflexão e discussão de como se fazer os processos pedagógicos.


4.  CONSIDERAÇÕES FINAIS


Ao iniciarmos essa pesquisa muitas eram nossas inquietações, as incertezas diante de uma situação nova, desconhecida. Na busca pela compreensão do conhecimento dos marceneiros, alguns questionamentos guiaram nossa pesquisa: o modo como eles operam a matemática em suas práticas laborais; de que forma esta matemática popular age de forma facilitadora na atividade cotidiana dos marceneiros; os significados da matemática escolar para a sua prática laboral; até que ponto eles sabem a matemática formal, e se sabem quando fazem uso desta; qual a posição deste grupo na “hierarquia do saber”; foram os nortes de nossa pesquisa.

Nossa pesquisa nos fez conhecer o “mundo dos marceneiros”, identificando os conhecimentos matemáticos presentes em seu cotidiano de trabalho, para posteriormente analisá-los sob o “olhar” da Etnomatemática. Para conhecermos este grupo social buscamos ferramentas metodológicas que nos possibilitassem captar minuciosamente o ambiente dos marceneiros, fazendo desta uma pesquisa qualitativa de inspiração etnográfica.

Durante o tempo em que entrevistamos e observamos o Senhor Geovani em sua prática laboral, percebemos que, parte do conteúdo desenvolvido na escola, tem significado na prática de marceneiro. No entanto, boa parte do que é desenvolvido, as linguagens, expressões ou nomes formais não são necessariamente compreendidos, nos moldes curriculares. Notamos que em muitos casos, os conteúdos desenvolvidos nas escolas acabam sendo desenvolvidos de forma linear, impossibilitando que o educando faça relações destes com as práticas populares. Logo, o marceneiro acaba desenvolvendo seus trabalhos, mas não utiliza os nomes ou conhecimentos acadêmicos dos conteúdos vistos na escola.

Outro aspecto que destacamos na análise do material empírico foi a hierarquização entre o saber popular do marceneiro e o saber acadêmico dos arquitetos e engenheiros. Durante nossa pesquisa verificamos o quanto a falta de conhecimento das novas tecnologias por parte dos marceneiros, contribui para esta hierarquização. No entanto, quando os arquitetos e engenheiros - possuidores do saber científico sobrevalorizado – são postos a operar na prática, “se perdem” em meio às medidas dos projetos, deixando lacunas nestes que só serão preenchidas pelo saber popular do marceneiro, visto que coletam medidas tudo sem compromisso.

 A partir destas investigações podemos afirmar que esta prática de pesquisa contribuiu para nosso crescimento acadêmico e pessoal, pois tivemos a oportunidade de “olharmos de forma mais intensa” para as práticas sociais cotidianas desenvolvidas no ramo da marcenaria e, ao mesmo tempo, problematizarmos questões voltadas aos saberes matemáticos presentes em um determinado grupo social, acrescentando-nos experiências que irão despertar novos olhares sobre os métodos pedagógicos. Logo, analisamos a relevância de pesquisas que discutam e reflitam a legitimação dos saberes populares que estão caminhando em paralelo ao currículo escolar e, assim, problematizem aqueles que estão “naturalizados” no currículo escolar. Dito de outra forma, “trata-se, portanto, de interrogar os resultados sociais causados pela presença de um particular conjunto de conhecimentos que inclui aqueles saberes que estão autorizados para serem ensinados e aqueles que são silenciados”. (DUARTE; HALMENSCHLAGER, 2007, p. 19).

Acreditamos que um caminho para valorizar este conhecimento, seria a aproximação do currículo formal e informal, pois sabemos que a matemática acadêmica, não favorece uma aprendizagem significativa de técnicas e conceitos que serão importantes na prática de um determinado grupo social.  Somente assim, diferentes grupos sociais poderão compreender seus próprios modos de produzirem significados matemáticos.

            A partir de toda discussão exposta anteriormente nesta pesquisa, alguns questionamentos permeiam a “agitada” educação matemática: Como o currículo formal – em especial a disciplina de matemática – se preocupa com as práticas sociais? Como mostrar a matemática popular no contexto escolar? Como valorizar estes saberes tão ricos, em um currículo tão atrelado a tradições? Como desenvolver a disciplina de matemática rompendo com a exatidão e linearidade próprias dela?

Portanto, nos questionamos porque os saberes matemáticos populares não são incluídos no currículo escolar. Tais saberes poderiam mostrar aos alunos que há diferentes formas de se “fazer matemática”. Assim, promovendo uma metodologia pautada na diversidade de culturas a qual seria um processo impregnado de reflexões e discussões trazendo os conhecimentos acadêmicos para o “mundo real”.

5.         REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALVES, Evanilton Rios. Atividade de Marcenaria e Etnomatemática: Possibilidades num contexto de formação de professores. São Paulo: PUC SP 2006
Disponível em:
Acesso em: 26 de março 2010

ALVES, Evanilton Rios. Etnomatemática: Uma proposta para ser pensada de como ensinar matemática no Ensino Fundamental II. São Paulo: Academos FIA 2005
Disponível em:
Acesso em: 10 de abril de 2010-04-10

BELLO, Samuel Edmundo López. Etnomatemática e sua relação com a formação de professores: alguns elementos para discussão. In: KNIJNIK, Gelsa, WANDERER, Fernanda, OLIVEIRA, Cláudio José (Orgs). Etnomatemática currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004.

CALDEIRA, Ademir Donizete. Educação Matemática: Individuo, sociedade e cultura. In;GUÉRIOS, Ettiene; STOLTZ, Tânia (Orgs).Educação, inclusão e exclusão social: contribuições para o debate. Curitiba: Aos quatro ventos, 2007
D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo: Ática, 1990

DUARTE, Claudia Glavam. Etnomatemática, currículo e práticas sociais do “mundo da construção civil”. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS, 2003.

DUARTE, Claudia Glavam; HALMENSCHLAGER, Vera Lúcia da Silva . Reflexões sobre inclusão/exclusão no âmbito da Educação Matemática. Prâksis (Novo Hamburgo), v. 2, p.17-23, 2007.

FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 34. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007

HALMENSCHLAGER, Vera Lúcia da Silva. Etnomatemática: Uma experiência educacional. São Paulo: Summus, 2001.

KNIJNIK, Gelsa. Exclusão e Resistência: Educação Matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996

KNIJNIK, Gelsa; WANDERER, Fernanda; OLIVEIRA, Cláudio José de (org.). Etnomatemática, currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004.

KNIJNIK, Gelsa. Educação matemática, culturas e conhecimento na luta pela terra. – Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006

MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa Crítica, Etnopesquisa-Formação – Brasília: Líber Livro Editora, 2006.

MONTEIRO, Alexandrina; POMPEU JR, Geraldo. A matemática e os temas transversais. São Paulo: Moderna, 2001.

6.            ANEXOS



[1] Graduados do curso de Licenciatura em Matemática da Facos

Um comentário:

  1. Oi Andrios Bemfica, gostei muito deste trabalho realizado no "mundo dos marceneiros" realmente tudo o que foi descrito pelo nosso amigo Geovani faz parte do nosso cotidiano. Realmente muitas vezes temos que fazer alterações nos projetos para colocá-los em prática. No caso de arquitetos e engenheiros com visão mais ampla, alguns preferem pedir opiniões e discutir propostas com os próprios marceneiros antes de concluírem seus projetos, isso evita muito transtorno com mudanças inesperadas e erros e gastos desnecessários.
    Como sempre dizemos (marceneiros) "No papel é uma coisa... Na prática é outra!". ou então "O papel aceita tudo".
    Parabéns pelo trabalho realizado!
    Att.: Marceneiro Ismael de Antoni Carvalho.

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